segunda-feira, 28 de outubro de 2024

O Voo do Anjo, de Alberto Araújo


“Eu estou muito bem: bem velho e bem flácido”!


Com as constantes e céleres modificações ocorridas na linguagem cinematográfica, bem como na maneira de se realizar os longas-metragens (ou mais ainda, na categorização do que seja efetivamente um filme), os críticos se vêem diante de um perene desafio, relacionado às atualizações informativas e receptivas. A antiga dicotomia entre bom/ruim não dá mais conta das necessidades das novas audiências, visto que algumas produções possuem funções específicas, para além da valoração qualitativa: há filmes que servem para difundir doutrinas religiosas, há aqueles que ajudam pessoas atormentadas a acertarem contas com traumas do passado e há aqueles que não sabem direito o que são ainda. Apenas são e/ou tentam ser…

O Vôo do Anjo” (2024), dirigido pelo mineiro Alberto Araújo, por vezes, parece a versão audiovisual das páginas amarelas de uma lista telefônica: sempre que aparece algum estabelecimento comercial, este tem o seu logotipo focalizado em ‘close-up’, a fim de divulgar a marca em pauta. O tom de extensão publicitária é tão explícito que, em dado momento, os personagens do filme viajam para uma vinícola em Paraúna, interior de Goiás, e, de repente, no que parece uma conversa informal com o dono do local, ele começa a falar sobre a seleção cuidadosa das uvas que servem como matéria-prima para seus vinhos, o que é seguido por imagens da colheita, do armazenamento e da fermentação do produto. Tudo bem que, por ser uma arte cara, o cinema requer financiamento, mas, do modo como aparece aqui, foi exagerado! 

Este poderia ser o maior problema da produção, mas há outros ainda mais graves, relacionados à condição de alta classe das pessoas cujos dramas são compartilhados: vinculados à elite econômica do Estado, a bonomia com que eles são tratados contrasta com a maneira com que é representada a empregada doméstica Dora (Cida Mendes), cujas falas são acompanhadas por efeitos sonoros de comédia-pastelão. Chega a ser constrangedor! 

Como estamos aqui para falar do filme, esforcemo-nos para encontrar aspectos dignos de menção: um deles é o instante em que o cantor Fred Monteiro executa “Canção para Aurora”, composta por ele e pelo próprio diretor, que explica o título da película, e serve como alento poético para os personagens e para quem tenha passado por uma tragédia semelhante. A tônica é a da platitude classista, com frases que parecem escritas por um ‘coach’, mas as intenções não parecem ruins… 

Crédito de Imagens: Fata Morgana / Divulgação / Califórnia Filmes
A produção foi rodada em Goiânia e contou com financiamento a partir da Lei Paulo Gustavo em edital de chamamento da Prefeitura de Gyn em 2023.


Protagonizado por Othon Bastos, que está surpreendentemente à vontade num papel sem muita densidade – apesar de sua boa interpretação –, “O Vôo do Anjo” fala sobre um encontro casual que salva a vida de ambos os envolvidos. Vítor Falcão, seu personagem, é um professor de Física aposentado, viúvo há cerca de um ano, que, em seu aniversário de oitenta e oito anos, recebe a notícia de que ficará sozinho, em sua cobertura, no vigésimo andar de um prédio chique de Goiânia. Seu filho Renan (Gustavo Duque) havia marcado um jantar consigo, mas, como ele é cirurgião plástico, não conseguiu desmarcar uma operação pré-agendada. Para compensar a ausência, ele encomenda um prato com picanha, num restaurante refinado. Obviamente, o nome do restaurante aparecerá em destaque! 


Quando a comida chega, o entregador é autorizado a subir no apartamento de Vítor: ele é Arthur (Emílio Orciollo Neto), um professor de Sociologia – que não cita uma única leitura de seu curso – cuja filha pequena caiu de um prédio, durante a festa de aniversário de uma de suas alunas, e ele culpa-se bastante pela situação que desencadeou a morte da garota. Afinal, a sua esposa Karina (Dani Marques) lhe pedira enfaticamente que ele não levasse a criança para aquela festa. Extremamente depressivo, Arthur tinha uma intenção bastante definida ao aceitar este emprego: ter acesso a apartamentos em alturas elevadas, a fim de, assim, vislumbrar o seu suicídio. Logicamente, Vítor não deixará que isso aconteça, e a troca de experiências entre ambos possibilitará que eles constatem que são “irmãos de época”, de modo que Arthur aceita cuidar de seu anfitrião, depois que Dora precisa voltar para a sua residência e Renan viaja para um congresso em Paris…

No afã por preencher uma hora e meia com diálogos e situações que possibilitem um mínimo de identificação emocional com o espectador (além de exibir as fachadas dos estabelecimentos que os ricos personagens freqüentam), Alberto Araújo registra alguns detalhes redundantes do cotidiano dos personagens, como a situação em que o psicólogo de Karina fala sobre “as cinco fases do luto” ou quando Arthur diz a Vítor que, se ele tivesse nascido no Século XV, ambos não teriam se conhecido. Como não se pode reclamar que o roteiro seja inverossímil (há pessoas que realmente interagem de maneira tão superficial, supradiplomática e programadamente otimista quanto os personagens), esperamos que a sua mensagem de conforto chegue a quem dela necessita. Filmicamente, entretanto, trata-se de algo até difícil de catalogar, tamanhos os equívocos estilísticos, a despeito da competência técnica das ferramentas utilizadas para captação de sons e imagens. Quase um documentário involuntário sobre as áreas de lazer dos biomédicos, cirurgiões e donos de restaurantes das zonas urbanas privilegiadas do Centro-Oeste brasileiro!

Trailer


Ficha Técnica

Título Original e Ano: O Voo do Anjo, 2024. Direção e RoteiroAlberto Araújo. Elenco: Othon Bastos, Emílio Orciollo Netto, Dani marques, Cida Mendes, Gustavo Duque, Ana Flávia, Mauri de Castro, Franco Pimentel, Catarina Meneghel, Karlla Braga. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de Fotografia: Émerson Maia ABCine. Direção de Arte: Nelci Batista. Edição de Imagens: Thiago Thessari e Henrique Martins. Trilha Sonora: Guilherme Bicalho. Finalização: Antônio H.L. Queiróz. Produção Fata Morgana. Produção Executiva e Co Produção: Débora Torres. Distribuição: Califórnia Filmes. Duração: 90 Minutos
EM EXIBIÇÃO NOS CINEMAS 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pode falar. Nós retribuímos os comentários e respondemos qualquer dúvida. :)