“O que os seus livros têm a ver com você assistir a uma peça, no teatro?”
Nos emocionantes créditos finais deste filme – ao oportuno som de “Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio –, descobrimos que o roteiro deste filme é baseado em eventos biográficos, inspirados na trajetória da mãe do diretor, Maria de Lourdes Carvalho Carneiro [1947-2013], que foi casada com o ator Herson Capri, pai do cineasta em pauta, estreante em longas-metragens, Pedro Freire. A despeito da suma emoção envolvida neste projeto, ele evita o registro hagiográfico, a construção de uma personagem abonada de defeitos. Muitíssimo pelo contrário: por vezes, chegamos a ficar assustados perante as reações impulsivas da personagem-título, antes que saibamos que, de fato, ela padece de uma condição psiquiátrica neurodegenerativa…
No início do filme, encontramos Malu Rocha, nome artístico da personagem biografada (magistralmente interpretada por Yara de Novaes), ensaiando diálogos de peças shakespeareanas, no terreno em que vive: ela mistura trechos de “Hamlet” com exercícios vocais e parece nervosa, enquanto faz isso, como se estivesse temendo alguma falha de memória. Terminado o ensaio, ela senta-se para folhear uma fotocópia da peça “A Vida de Galileu”, de Bertolt Brecht, enquanto fuma um baseado. Estamos no Rio de Janeiro, na década de 1990.
Numa sobreposição de conflitos actanciais deveras assemelhados àqueles que encontramos no esplêndido “Amélia” (2000, de Ana Carolina), notamos que Malu vive com a sua mãe Lourdes (Juliana Cardeiro da Cunha), conhecida por todos como Dona Lili. Excessivamente católica, esta senhora, numa determinada tarde, convida um padre (Márcio Vito) para visitar a sua residência, o que irrita a provocativa Malu. Depois de insinuar que Jesus Cristo seria pedófilo, como alguns sacerdotes, a partir de uma interpretação satírica do versículo “vinde a mim as criancinhas”, Malu expulsa o padre de sua casa, enquanto sua mãe tenta justificar as atitudes da filha repetindo algo que volta em mais de uma situação (“ela é drogada!”), o que desemboca numa troca de agressões físicas entre as duas. Malu detesta a sua mãe?
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e Ano: Malu, 2024. Direção e Roteiro: Pedro Freire. Elenco: Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha, Carol Duarte, Átila Bee. Gênero: Drama. Nacionalidade: Brasil. Direção de fotografia: Mauro Pinheiro Jr., ABC. Direção de arte: Elsa Romero. Montagem: Marilia Moraes, EDT. Figurino: Rô Nascimento. Coordenação de Pós-produção: Guga Nascimento, Nat Mizher. Produtores: Tatiana Leite, Roberto Berliner, Sabrina Garcia, Leo Ribeiro. Produção Executiva: Carlos Eduardo Valinoti, Tatiana Leite, Sabrina Garcia, Leo Ribeiro. Coordenação Executiva: Isabel Lessa. Desenho de som: Daniel Turini. Supervisão de Som: Fernando Henna, Henrique Chiurciu. Mixagem: Daniel Turini. Direção Musical: Jonas Sá. Colorista: Silvia Abreu. Produção: Bubbles Project e TvZero. Coprodução: RioFilme, Telecine e Canal Brasil. Codistribuidor brasileiro e apoio: RioFilme. Apoio: Projeto Paradiso. Distribuição: Filmes do Estação. Duração: 01h40min.
O surgimento desta pergunta, na mente do espectador, é um dos primeiros ganhos reflexivos deste filme, no sentido de que a protagonista é dotada de extrema ambigüidade, sendo bastante irritável e autoritária na maneira como conversa com as pessoas. O questionamento supracitado não é fácil de ser respondido, portanto: pouco tempo após a briga com a sua mãe, ela surge com feridas no rosto, preocupada com a idosa, que, quando Malu era jovem, a internou num hospício, por não concordar que ela fosse atriz. A lógica das oposições geracionais assume o primeiro plano da narrativa, que ganha novos contornos quando Joana (Carol Duarte), filha de Malu, entra em cena.
Recém-chegada da França, Joana é considerada uma ‘yuppie’ por sua mãe, que lamenta que a geração de sua filha não tenha dado continuidade à liberalidade que ela experimentou e defendeu durante as décadas de 1960 e 1970. Malu comumente narra situações em que fôra aprisionada, por militares, durante o período ditatorial, e tem a intenção de construir um Centro Cultural no espaço em que vive, mas precisa que seu ex-marido transfira a escritura para o seu nome. Na execução de seus projetos, Malu conta com o apoio do artista homossexual Tibira (Átila Bee), que vive consigo e é alvo dos preconceitos de Dona Lili. Todos estes personagens protagonizarão demorados embates, ao longo dos cento e três minutos de duração.
Crédito de Imagens: Bubbles Project e TvZero. Divulgação. Filmes do Estação
O longa passou pelo Festival de Sundance em janeiro deste ano e já ganhou inúmeros prêmios ao redor do mundo. No Brasil, foi vencedor de quatro prêmios importantes no Festival do Rio (Melhor Atriz, Melhor Atriz Coadjuvante, Melhor Roteiro e Melhor Filme.
Muito bem dirigido, com um ritmo que evoca metalingüisticamente a dinâmica teatral que a personagem-título aplica em seu dia a dia, “Malu” oferece-nos interpretações brilhantes de um elenco inspiradíssimo, numa trama que se torna progressivamente dramática, sobretudo quando Dona Lili narra um episódio familiar de abuso sexual, depois que experimenta maconha pela primeira vez, num aniversário, ou quando, após muita relutância, Malu é convencida por Joana a visitar um consultório psiquiátrico, onde descobre que está com uma síndrome degenerativa avançada, a Doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ), popularmente conhecida como “doença da vaca louca”. Um espelhamento invertido da relação entre Lourdes e Malu ocorrerá entre Malu e Joana…
Num instante mui aflitivo – em mais de um aspecto –, a pergunta derradeira de Malu (“para onde a gente está indo?”) confirma a pujança do impacto emocional desta obra, que é tanto uma reflexão geracional quanto uma justa homenagem a uma talentosíssima atriz brasileira, não tão reverenciada como merece. Se, ao término do filme, queremos pesquisar sobre ela e confirmar a sua relevância cênica, celebrada nas reminiscências que servem como inspiração para os diálogos, durante a audiência, experimentamos múltiplas sensações, ao testemunharmos os surtos e devaneios de Malu Rocha, bem como as suas demonstrações de carinho, direcionadas tanto à sua mãe quanto à sua filha. Um filme com uma cadência alternativa e intimista, que se diferencia positivamente das produções biográficas realizadas no Brasil: um trabalho adulto e merecedor de múltiplos elogios pela audácia do filho, que não sucumbe à caretice que a representação ficcional de sua mãe tanto temia. “Não quero uma celebração da memória da mãezinha, não. Faça o que tu quiseres”, diz Malu a Joana, em determinado momento. Pedro Freire cumpriu a sua parte no acordo. Eis um desafio a ser também aceito pelas platéias atuais!
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