“Está tudo tão silencioso que somos quase obrigados a sussurrar!”
Assim que identificamos a cadência narrativa deste filme, em que passado e presente se confundem, na maneira cíclica com que se repetem e/ou são evocados, pensamos no clássico “Filhas do Pó” (1991, de Julie Dash) como referência. Diferentemente desta obra, entretanto, “Todas as Estadas de Terra Têm Gosto de Sal” (2023), estréia em longa-metragem da também roteirista Raven Jackson, concentra-se numa família mais reduzida, formada inicialmente por pai, mãe e duas filhas.
Na seqüência de abertura, acompanhamos Isaiah (Chris Chalk) ensinando as crianças a pescar. Uma delas, após capturar alguns peixes, introduz a sua mão na lama do rio, num gesto que será reproduzido várias vezes ao longo da trama, de modo a reforçar um ensinamento repassado de mãe para filha, o de que “somos feitos de barro e água”. E esta percepção será definitiva para Mackenzie (interpretada por Kaylee Nicole Johnson, na infância), enquanto ela cresce…
As duas garotas demonstram-se fascinadas pelo charme de sua mãe, Evelyn (Sheila Atim), que as ensina como preparar o peixe, como se maquiar e como dançar. Há algo de melancólico em seu semblante, entretanto. O falecimento súbito desta matriarca fará com que as irmãs sejam enviadas para a casa de sua avó, onde passarão por outras experiências de maturação emocional. Na idade adulta, Mackenzie (agora interpretada por Charleen McClure) reencontrará um namorado de adolescência, Wood (Reginald Helms Jr.), de quem engravida.
Trailer
Ficha Técnica
Título Original e ano: All Dirt Roads Taste of Salt, 2023. Direção e Roteiro: Raven Jackson. Elenco: Mylee Shannon, Kaylee Nicole Johnson, Charleen McClure, Zainab Jah, Chris Chalk, Jayah Henry, Sheila Atim, Preston McDowell, Moses Ingram, Monique Norwood, Regina Helms Jr. Gênero: Drama/Ficção. Nacionalidade: Estados Unidos. Música: Sasha Gordon, ld Victor Magro. Fotografia: Jomo Fray. Edição: Lee Chatametikool. Empresas Produtoras: A24, Pastel, Tender. Distribuição: Pandora Filmes. Duração: 118 minutos
Trabalhando como gerente de uma empresa, Mackenzie prefere entregar a sua filha para ser criada por sua irmã, Josie (Moses Ingram), e, muitos anos depois, já idosa (agora interpretada por Zainab Jah), ensinará algo fundamental à garotinha, que tem tudo a ver com o modo como o próprio filme é narrado: “a água nem começa nem termina. Ela apenas muda de forma”. É o que percebemos na maneira como esta família leva à frente alguns padrões afetuosos…
Sobremaneira poético, este filme – cuja influência, na produção, do cineasta Barry Jenkins é notável – possui um enredo permeado por diversas elipses, além de ser alinear. Num primeiro contato, parece difícil entender o que está acontecendo, mas é quando a sensibilidade da diretora intervém, convidando-nos a outro tipo de imersão estética, a uma compreensão via aceitação plena da beleza, no mundo que nos circunda. Isso não elimina um quinhão de tragicidade, de modo que Mackenzie é flagrada chorando – eliminando lágimas abundantes –, nas diversas fases de sua vida. E isso ocorre porque ela ama. Quem é triste, ama – e/ou vice-versa.
Crédito de Imagens: Pandora Filmes | Divulgação | A24 | Pastel | Tender
O título da película se refere a prática de comer terra/argila por comunidades pobres no sul dos Estados Unidos. Em particular, os afro-americanos.
Numa seqüência tão maravilhosa quanto surpreendente, em sua audaciosa extensão, Mackenzie e Wood abraçam-se por um tempo incomum nas produções estadunidenses. Noutro momento, ainda na adolescência, quando ele pergunta o que ela está fazendo, sentada no tronco de uma árvore, ela apenas responde que “está contemplando”, que é justamente aquilo que deve ser efetivado pelo espectador: em vez de apressar-se em identificar o que é uma lembrança e o que é um acontecimento no presente, o recomendado é assimilar ambas as situações como inter-relacionadas no ciclo chuvoso mencionado pela idosa Mackenzie. Afinal, a água pode estar dentro de nós!
Para ser exitosa em seus intentos artísticos, Raven Jackson cercou-se de uma equipe técnica primorosa, com destaque para o fotógrafo Jomo Fray e para o montador tailandês Lee Chatametikool, além de um elenco perfeitamente entrosado. A trilha sonora surge em instantes beatíficos, justificando a exigüidade de diálogos e grandificando o requinte desta produção fílmica, que foi premiada em diversos festivais. Entretanto, o deslumbramento provocado pelas imagens e o encanto advindo das relações fraternais não elimina a impressão de que o filme é também excessivamente pretensioso em sua pompa alternativa. Requer um público disposto a ser desviado do ritmo célere da maioria dos longas-metragens contemporâneos.
07 de Novembro Nos Cinemas
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