O Auto da Compadecida 2, de Guel Arraes e Flávia Lacerda


A comparação costuma ser um convite à frustração. Dadas as devidas nuances das circunstâncias da vida, criar expectativas com algo, além de tudo, é um tanto injusto com o objeto no qual as esperanças foram projetadas. Porém, se tratando de uma obra cultuada como O Auto da Compadecida, as expectativas para uma sequência são totalmente compreensíveis.

25 anos após ser revivido, o fanfarrão João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna a Taperoá. Para sua surpresa, o tempo que passou fora lhe concedeu fama devido às histórias fantásticas que a população ouviu de seu amigo Chicó (Selton Mello) sobre sua ressurreição. Apesar de não ter lembranças da experiência, João grilo vê uma oportunidade de tirar proveito do seu recém-descoberto título de celebridade e se envolve em intrigas entre os dois candidatos à prefeitura do município, o ganancioso Arlindo (Eduardo Sterblitch) e o poderoso Coronel Ernani (Humberto Martins), que tentam conquistar o eleitorado através da “bênção” de João. A manipulação, contudo, pode acabar colocando em risco a segunda vida da lenda local. Paralelamente a isso, Chicó lida com a volta de outra figura importante de sua vida, Rosinha (Virginia Cavendish), o grande amor que nunca conseguiu superar.

É natural o público e a crítica encararem com desconfiança uma sequência de um clássico tão celebrado como O Auto da Compadecida. Mais de duas décadas após seu lançamento ainda é um dos filmes brasileiros mais lembrados e queridos. Uma continuação tão tardia poderia sugerir uma estratégia fácil para lucrar em cima da nostalgia da dita audiência, num momento em que o cinema nacional busca estratégias para levar as pessoas às salas monopolizadas por títulos estrangeiros. Porém, considerando que a ideia de uma nova aventura protagonizada por João Grilo e Chicó foi discutida com o autor da obra, Ariano Suassuna, e aprovada por sua família após sua morte, há espaço para alguma boa vontade neste universo fantástico.

                  Crédito de Imagens: Conspirações Filmes, H20 Produções, Claro |  H20 Films - Laura Campanella
Nesta sequência, a atriz Thais Araújo troca de lugar com ninguém mais, ninguém menos que Fernanda Montenegro e vive a ''Compadecida''. Na série e no filme dos anos 2000, Montenegro viveu ''Nossa Senhora'', mas de ''Jesus'', papel que foi de Maurício Gonçalves.

O resultado agrada e garante o riso, mas carece do charme e do coração do filme original. Enquanto o clássico de Guel Arraes, remontagem de uma minissérie em formato de filme que agradou muito às plateias na época da Retomada do Cinema Brasileiro, se destaca pelo realismo de seus cenários e pela granulação de suas imagens que ressalta as texturas do sertão, a sequência aposta em cenários digitais e composições de plasticidade higienizada e propositalmente farsesca. O Auto da Compadecida 2, codireção de Arraes com Flávia Lacerda, substitui as paisagens do município paraibano de Cabaceiras, locação do primeiro filme, por um ambiente controlado em estúdio com telões de LED e ambiciosos efeitos visuais. Novas técnicas cinematográficas para um novo tempo. Os sets de arquitetura irregular e fundos digitais conferem a produção uma artificialidade que, além de destoar muito da estética do longa original, afastam O Auto 2 de uma concretude geográfica palpável. Isso não necessariamente é algo ruim, ficando clara a intenção de emular ilustrações de cordel, mas sublinha o ar teatral de personagens e situações baseados na obra de Suassuna.

O roteiro coassinado pelo trio de roteiristas do filme original, Guel Arraes, João Falcão e Adriana Falcão (e desta vez também Jorge Furtado), mistura elementos das peças de Suassuna “Auto da Compadecida” e “A Farsa da Boa Preguiça”. Contudo, trata-se de uma trama original, o que dá liberdade a narrativa de apresentar personagens novos através de um verniz de familiaridade. Não faltam alfinetadas à hipocrisia da política e a demagogia religiosa que transforma o povo em massa de manobra. Contudo, este novo episódio das aventuras de João e Chicó soa muito mais episódico, com uma estrutura de situações que por vezes lembra mais esquetes desconexas terminadas em bordão do que exatamente uma história coesa. Na falta de uma conclusão satisfatória pra uma cena, basta colocar na boca dos personagens um relato fantasioso e claramente aumentado seguido das palavras “não sei, só sei que foi assim”. Não é complexo, não é refinado, e tudo bem, porque nem precisava ser. O Auto da Compadecida é lembrado com tanto apreço pelo público brasileiro por seus personagens cativantes e sua trama ágil que brinca com religião e regionalidade sem soar desrespeitoso. Sua sequência, ainda que em menor escala, diverte de forma leve e despretensiosa. Não choca nem emociona como o filme  lançado no inicio dos anos 2000, deixando a ousadia criativa para outros aspectos, como escolhas narrativas envolvendo um novo julgamento da alma de João Grilo, reimaginada aqui de forma muito menos grandiloquente e apoteótica. Mas novos personagens, como a teatral e exotizante Clarabela (Fabiula Nascimento) e o sócio comercial de João Grilo, Antônio do Amor (o sempre excelente Luís Miranda), trazem frescor pra esta visita a Taperoá. Além disso, todo repeteco vale a pena quando temos a oportunidade de testemunhar mais da química inigualável entre Matheus Nachtergaele e Selton Mello. Autoconsciente e genuinamente engraçado, O Auto da Compadecida 2 replica acertos do filme original e diverte o público que for ao cinema de coração aberto. Sabendo que é impossível replicar o impacto e sucesso de seu antecessor, esta sequência se permite pegar leve e brincar com a familiaridade do sertão fantástico de Suassuna.

Trailer


Ficha Técnica
Tìtulo Original e Ano: O Auto da Compadecida 2, 2024Direção: Flávia Lacerda e Guel Arraes. Roteiro:  Guel Arraes e João Falcão. Colaboração de Roteiro: Adriana Falcão e Jorge Furtado. Elenco: Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Taís Araujo, Humberto Martins, Luis Miranda, Eduardo Sterblitch, Fabiula Nascimento, Virgínia Cavendish, Enrique Diaz. Gênero: Comédia, Aventura. Nacionalidade: Brasil. Trilha Sonora Original: João Falcão e Ricco Vianna. Direção de Fotografia: Gustavo Hadba, ABC. Direção de Arte: Yurika Yamasaki. Figurino: Emilia Duncan. Maquiagem: Rosemary Paiva. Montagem: Fabio Jordão. Diretor de Efeitos Visuais: Claudio Peralta. Som Direto: Gui Algarve. Desenho de Som e Mixagem: João Jabace. Colorista: Pedro Saboya. Produção: Guel Arraes, Edson Pimentel, Pedro Buarque de Hollanda e Sandro Rodrigues. Coprodução: Renata Brandão e Juliana Capelini. Produção Executiva: Tania Pacheco, Claudio Peralta e Carolina Jabor. Produtores Associados Matheus Nachtergaele e Selton Mello. Coprodutores Executivos: Marcos Penido, Adriana Basbaum. Gerentes Executivas: Fabiana Guzman, Jenifer Marques, Monica Zennaro e Maria Paula Carvalho. Produtora Delegada: Rose Soares. Produtores de Elenco: Alonso Zerbinato. Produção: Conspiração Filmes e H2O Produções. Patrocínio Master: Instituto Cultural Vale e Brahma. Patrocínio: Santa Helena, Itaú, TikTok, Nubank, Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Emiliano. Coprodução: Claro. Apoio: RioFilme. Distribuição: H2O Films. Duração: 01h44min.
25 DE DEZEMBRO NOS CINEMAS

Escrito por Petterson Costa

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