Louco por Cinema, de Arnaud Desplechin

 “Os EUA inventaram os primeiros filmes; a França descobriu o cinema”! 

Os filmes sobre descoberta da cinefilia são quase um subgênero à parte, podendo versar sobre o potencial revolucionário da Sétima Arte na sociedade [“Um Homem com uma Câmera” (1929, de Dziga Vertov)], a sanha por tornar-se realizador, após a audiência freqüente a filmes [“A Noite Americana” (1973, de François Truffaut), “As Cento e Uma Noites” (1995, de Agnès Varda), “Salve o Cinema” (1995, de Mohsen Makhmalbaf), “O Enredo de Aristóteles” (1996, de Jean-Pierre Bekolo), “Cine Holliúdy” (2012, de Hálder Gomes) e “O Deus do Cinema” (2021, de Yoji Yamada), para ficar apenas em alguns] ou mesmo a influência da nostalgia fílmica em nosso cotidiano afetivo [“Cinema Paradiso” (1989, de Giuseppe Tornatore)]. Poderíamos passar o dia inteiro listando obras que mesclam emoção e enciclopedismo, mas sempre estamos dispostos a conferir mais um olhar acerca do assunto… 

Mesclando o documentário ensaístico com reconstituições ficcionais autobiográficas, o veterano diretor francês Arnaud Desplechin, em “Loucos por Cinema!” (2024), compartilha a narração com o seu ator-fetiche Mathieu Amalric. Um mesmo personagem – na verdade, um alter-ego que já apareceu em trabalhos anteriores do cineasta – surge em quatro momentos importantes, sintetizando as mudanças decisivas do artista, naquilo que o interessava cinematograficamente. Seu ponto de partida é pictórico, constatando o aprimoramento da perspectiva nos trabalhos de vários pintores, num contexto em que o surgimento da Psicanálise trouxe consigo a exigência da “significação”. 

Conhecemos Paul Dédalus, este mencionado alter-ego, aos seis anos de idade (então interpretado pelo garotinho Louis Birman), indo ao cinema com a sua avó, pela primeira vez. Eles estão vendo “Fantômas” (1964, de André Hunebelle), quando a sua irmãzinha fica assustada e pede, chorando, que todos voltem para casa. O primeiro contato do menino com um filme, exibido na sala escura, deu-se sobre o signo da interdição, portanto. Porém, será intensificado à medida que ele for crescendo, o que acompanharemos de maneira alinear. A despeito de suas condições favorecidas de classe, o espelhamento é inevitável! 
 
À medida que o semidocumentário avança, o diretor intermedeia comentários sobre alguns de seus filmes favoritos – ou aqueles que ele considera mais relevantes na História do Cinema – com situações de sua própria vida, como quando, na adolescência, exibiu “As Pequenas Margaridas” (1966, de Vera Chytilová), num cineclube do colégio. Nesta fase, é o promissor Milo Machado-Graner quem interpreta Paul Dédalus, numa demonstração de que os seus interesses geracionais diferiam bastante dos demais colegas. 

Crédito de Imagens: GC Cinéma, Scala Films,Arte France Cinéma, Hill Valley Productions - Filmes do Estação / Divulgação
A produção foi exibida durante o Festival do Rio em 2024 e sua estréia mundial foi no Festival de Cannes do mesmo ano.

No início de sua idade adulta, Paul Dédalus – agora vivido por Sam Chemoul – acumula “paixões impossíveis”, tornadas assim por conta de sua inabilidade em aproveitar as oportunidades interativas que são descortinadas à sua frente: ele e duas amigas trocam carícias e opiniões após a sessão de um filme de Francis Ford Coppola, até que, num instante de solidão, ele descobre o colosso depoimental que atende pelo nome de “Shoah” (1985, de Claude Lanzmann), obra-prima com mais de nove horas de duração sobre o Holocausto Judeu. Isso terá uma importância tão poderosa em sua trajetória pessoal, que ele chegará a viajar para Israel, a fim de cumprimentar uma estudiosa do filme. Noutro capítulo, ele é mostrado no túmulo do documentarista, refletindo sobre o que a obra provocou em si… 

Por fim, Paul Dédalus é interpretado por Salif Cissé, que observa Mathieu Amalric enquanto ambos assistem ao clássico “Os Incompreendidos” (1958, de François Truffaut). É a deixa para que ele queira tornar-se um diretor de cinema, o que é percebido pelo astro, durante a sessão. Deveras simpático, Arnaud Desplechin permite que os seus intérpretes tragam à tona aspectos que constituíram a sua cinefilia, como o conceito de “fotogênese”, tal qual adotado pelo filósofo estadunidense Stanley Cavell [1926-2018]; a sua amizade com o crítico norte-americano Kent Jones, com quem colaborou no roteiro de “Terapia Intensiva” (2013); ou a sua obsessão por assistir a um mesmo filme no mínimo três vezes: “a primeira é para descobrir; a segunda, para admirar; e a terceira, para apender”. 

Ainda que não queira se demonstrar como um olhar definitivo – muito pelo contrário: é uma contribuição subjetiva –, “Loucos por Cinema!” é uma homenagem entusiástica às transformações que algumas obras provocam em nossas vidas, metonimizado no instante em que o pequeno Paul, diante da TV, apavora-se ao descobrir o segredo do personagem de Gregory Peck em “Quando Fala o Coração” (1945, de Alfred Hitchcock). Isso surge após um professor universitário explicar os três grandes momentos de “democratização do olhar espectatorial”: no teatro, na sala de cinema e diante de uma televisão. Em menos de uma hora e meia, revemos cenas de filmes tão distintos quanto “A Tocha de Zen” (1971, de King Hu), “A Época da Inocência” (1993, de Martin Scorsese) e “Rio Congelado” (2008, de Courtney Hunt), além de reflexões sobre as primeiras sessões públicas e as lembranças que entrevistados contemporâneos compartilham acerca de suas preferências cinefílicas. Não tem como não se emocionar durante a audiência a este filme, portanto: o momento em que o garoto Paul vê um clássico dreyeriano em companhia de seus pais, na TV, ou quando o adolescente Dédalus encanta-se por um longa-metragem bergmaniano, num cinema com classificação indicativa superior à sua idade, ilustram muito bem algo que todos nós passamos, em algum instante de nossas vidas. Muito bonito reviver tais situações! 
 
Trailer 
 
 Ficha Técnica
 
Título original e ano: Spectateurs!, 2024. Direção: Arnaud Desplechin. Roteiro: Arnaud Desplechin. Colaboração no Roteiro: Fanny Burdino. Elenco: Louis Birman, Dominique Païni, Clément Hervieu-Léger, Françoise Lebrun, Flavie Dachy,  Sandra Laugier, Olga Milshtein, Taos Hammoudi, Noé Castanier, Salome Rose Stein, Pascal Kané,   Sam Chemoul, Mathieu Amalric, Milo Machado-Graner, Salif Cissé. Gênero: Drama. Nacionalidade: França. Trilha Sonora Original: Grégoire Hetzel. Fotografia: Noé Bach. Edição: Laurence Briaud. Design de Produção: Toma Baqueni. Figurino: Judith de Luze. Distribuição: Filmes do Estação. Duração: 01h28min.   
 
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Escrito por Wesley Pereira de Castro

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